sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Foi assim, que Almodóvar salvou o meu dia.

Não pode ser coincidência, não mesmo.

Hoje recebi uma carta da minha mãe, depois de já ter inscrito umas quatro vezes pra ela e não ter havido resposta. Ontem, liguei pra ela, não que eu tivesse crédito no celular, mas aproveitei o celular da faculdade, quando estava ligando para uma fonte que será importantíssima para uma reportagem que eu desejo fazer.

Hoje recebi a carta, em meio a tantas outras cartas (que nunca são pra mim) e uma revista Psique, possivelmente assinada por Lidiane, minha colega da casa de estudante formada em pedagogia.

Fui à venda ao lado, onde geralmente o carteiro deixa as correspondências (porque o muro da casa não tem caixa de correio). A minha intenção foi comprar um choquito (único chocolate da venda que ainda serve para ser comestível), quando o vendedor pediu que eu aguardasse e me veio com as mãos cheias de envelopes. Coloquei-os sob os braço e comprei com dois reais um chiclete, uma bala e um serenata de amor, além do choquito. Até aí, tudo estava tranquilamente normal.

Cheguei ao meu quarto e deitei na cama. De imediato coloquei os envelopes no chão, afastei o colcha da cama e o shampoo e o condicionador que eu havia colocado lá há umas duas horas atrás, quando havia cogitado a possibilidade de tomar banho e ir para o mini-curso de fotografia que eu tinha lá no museu de arte moderna.

Os flocos do choquito eram super degustados quando dei por mim com a lembrança das correspondências. Levei o braço até o chão e de lá trouxe um amontoado de envelopes o mais próximo que eu pudesse da minha visão. Achei primeiramente uma revista envolta com um plástico azul-quase-transparente e de lá percebi que se tratava de uma revista Psique (daquelas que eu sempre vejo nas bancas só que nunca havia cogitado a idéia de comprá-la).

Olhei para Helder, meu colega de quarto, que estava deitado na sua cama ao lado e indaguei: “- Adivinha o que é? [...] Uma revista psique, vamos abri-la?”

Quando dei por mim a revista já estava fora da embalagem e na mão de Helder, e a matéria da capa dizia “Psicologia da corrupção”. Vibramos juntos com a possibilidade de poder ler aquela reportagem.

No mais, continuei a dar atenção aos envelopes na minha mão e fui passando de um a um. Logo percebi a existência de um envelope de carta - diferentemente dos envelopes de cobrança - eles são listrados nas extremidades por linhas verdes e amarelas. A ansiedade logo tomou conta de mim pelo fato de ter lembrado que minha mãe havia me dito ontem que tinha colocado uma carta no correio pra mim, mesmo achando que cartas eram surpresas, ela resolveu me dizer ao telefone pela falta de novidades.

Neste momento eu parei – mas não parar definitivamente, mas um parar interno, um freio nos pensamentos e uma abertura para reflexão. Pensei sobre a possibilidade de ser a carta que minha mãe havia dito, mas contando com a velocidade do correio achei aquilo improvável e logo me deparei perdido. Preferi não obter esperança – sempre escutei que essa é a melhor forma de não nos frustrarmos.

Continuei a passar os inúmeros envelopes-de-cobrança, quando dei um TREMENDO grito: - “Ahhhhhhhhhhhhhhhh!”

ERA A CARTA QUE MINHA HAVIA ME DITO ONTEM. (neste instante pude perceber o rosto de Helder envolto de um susto, devido aquela tarde de sexta estar mais tranqüila que o normal, será que era devido o clima nublado?)


***


Segurei a carta em mãos, sem ainda poder acreditar.

Não poderia ser verdade, não mesmo!

Mas lá estava: para Alexsandro Oliveira Santos, de Aurora Silva Oliveira.

O filme de Almodóvar, Tudo Sobre Minha Mãe, que estava no DVD, ficou a esperar, enquanto eu me devotava aquele momento tão esperado, aquele momento que eu imaginava que custaria a acontecer.

Abri o envelope com medo de rasgar a carta que tomava quase todo o espaço do envelope, e de lá extraí a carta. Uma folha de caderno, cheia, CHEIA de palavras escritas pela minha Aurora, palavras que a partir daquele momento estariam INSCRITAS no meu pensamento-coração.

Comecei a ler e as palavras eram tão verdadeiras, tão banhadas por um realismo, por um cotidiano que fazia parte de mim há um ano e meio. Vivia cotidianamente com minha mãe, e hoje ela está lá, tão longe, tão distante e sem saber tão pouco do Alex que Ela colocou no mundo.

Aquela carta me salvou. Ela preencheu minha tarde de forma tão intensa que eu ouso a dizer que ela salvou o meu dia.

Fui assistir o filme de Almodóvar com uma sensação de que não era Tudo Sobre a Minha Mãe que eu ia assistir, e sim a minha própria vida – porque é assim que eu costumo ficar quando termino de assistir os seus filmes.

Os seus filmes são de um realismo, de uma antropologia tão apaixonante, que desfaz o endeusamento dos seres humanos e nos retratam de uma forma tão mortal, tão iguais – mesmo convivendo numa sociedade.

Eu, definitivamente, viveria num enredo almodovariano tranquilamente. E nem me importaria em ser um travesti, porque eles nos filmes de almodovar são envoltos de graça, não parecendo ser a pior parte do ser humano, aquela que quase sempre tentamos esconder debaixo de nossas máscaras.

Eles, os travestis, são humanos. Choram, amam, vivem e sonham.

Num é assim que eles deveriam ser vistos, Como mais um ser HUMANO?


***


E dessa forma, a noite caiu por brotas. Aqui, neste quarto de uma casa de estudante – igual ou diferente a qualquer outra casa. Foi assim, que Almodóvar salvou o meu dia.